Uma luz brilhante invadiu os céus, num instante o silêncio, sentiu a luminosidade branca invadir-lhe as pálpebras, e quase cega-lo apesar dos olhos bem fechados, os tímpanos contraiam-se, apenas um silvo. Abriu os olhos e viu avançar de rompante, um onda de destruição na sua direcção, foi empurrado para trás ficando colado ao metal do carro de guerra, sem tempo para se aperceber das dores, chegou uma segunda onda de calor infernal, quesubitamente lhe cremou os cabelos,as sobrancelhas e quasquer pelos não cobertos pela armadura, queimando-lhe também a pele até à carne, fazendo-a estalar e cair. Desfaleceu.
Recuperou a consciência estava vivo e baralhado! E a guerra ia longa! Com a sua crueldade insensível destruía tudo à sua passagem. No campo de batalha, jaziam corpos mumificados, esqueletos quebrados em mil pedaços, pedaços de carne humana espalhada como num talho abandonado, e o chão polvilhado de cápsulas de balas e ogivas, esburacado pelas bombas de fragmentação que estilhaçavam a paisagem circundante, as árvores mortas eram o único ser reconhecível que se mantinham de pé, a cor predominante era o cinzento no chão e um amarelo duma névoa de gases químicos, com um cheiro acre irritante às vias respiratórias misturado com o cheiro doce dos corpos impregnados de morte. O céu sem cor, o bréu, uma tonalidade quase fluorescente, não se sabendo se era dia ou noite, e toda a atmosfera estéril, seca e fria.
Na trincheira, o Soldado tinha perdido os seus companheiros. O Capitão mantinha-se há dois dias a olhar pelos binóculo o horizonte do inimigo, a zona tinha sido bombardeada com uma arma experimental, e o seu corpo mantinha-se na mesma posição, olhando eternamente para o inimigo, sem olhos, sem carne, todo ele carvão, decompondo-se. O soldado olhava-o e invejava a sua sorte. Despertou deste seus pensamentos com o barulhos longínquo de explosões preenchiam o seu espaço, olhava em volta e nada. Apenas sons de vozes mecânicas voavam por cima, pedindo a rendição e capitulação. Alucinava. Agachado dentro do seu tanque camuflado e meio enterrado, disparava um último morteiro sem apontar qualquer objectivo e como que a dizer que ainda ali estava. Tapou os ouvidos e seguiu o caminho do projéctil que se despenhava sobre a trincheira adversária. Talvez já vazia e abandonada ou plena de cadáveres. Não sabia o resultado de tal acção nem tão-pouco merecia a sua preocupação.O rádio avariado, transmitia interferências, o radar quebrado em dois já nada indicava. Não iria abandonar o seu posto, teria de procurar munições, avançou uma trincheira e procurou no meio dos escombros algum cadáver recente para se alimentar e munições para carregar a sua M4-mk. Não havia carne nos corpos e tudo estava incinerado e calcinado. Achou um par de granadas e um cantil. Era a sua madrugada de sorte naquela trincheira.
A poeira começava a assentar. Seguiu em frente, caminhou quilómetros, alcançou uma floresta, ou o que restava dela, uma quantidade de palitos frágeis e queimados que se erguiam do solo. Subia por uma colina, que antigamente vibrava de vida, com o chilrear dos pássaros e os barulhos de raposas e lebres e outras espécies que habitaram entre a vegetação. Restava a terra petrificada e vítrea e a amalgama de troncos quebradiços. Sabia que do outro lado, no vale, houvera uma vila, quiçá poupada por um milagre...chegou ao cume e viu uma massa de cimento e cinza, as casas sumiram-se, o alcatrão das ruas misturava-se com o metal retorcido dos carros e de silhuetas de corpos a eles grudados. Procurava um sinal de vida naquela paisagem horizontal negra, perdia-se, não distinguia as ruas, das casas, nem os passeios dos jardins, tudo era uma amontoado de escombros cravados no chão e arrastados pela força bruta da tecnologia destrutiva do Homem.
Encontrou uma casa com as paredes do 1º andar de pé, e miraculosamente com a porta fechada, a curiosidade de ter encontrado algo familiar e as saudades de se identificar com algo que lhe parecesse com um lar fê-lo entrar. Lá dentro tudo destruído e sem tecto, porém debaixo de alguns escombros sobressaia uma porta, talvez uma cave. A custo abriu-a, entrou e viu pela primeira vez cores. Um abrigo! Uma escada de mármore, um corrimão de metal levavam-no a uma cave, desceu agarrado ao corrimão sentido a suavidade do ferro polido e brilhante, liga a sua lanterna e lança uma gargalhada.Descobriu uma adega intocada, virgem, como que uma imagem dum tempo que nunca mais existiria e não fora o pó e seria o local mais idílico da Terra; Uma mesa comprida ao centro, com dois bancos compridos de cada lado acompanhando a mesa. As paredes com fileiras e fileiras de garrafas armazenadas e na parede do fundo, presos com pregos, presuntos e chouriços, e salpicões em fumeiro. Sacando da sua catana leva um presunto, e duas garrafas, para a mesa e comeu desalmadamente. Incapaz de impedir as lágrimas, continuava a devorar tudo, porém saboreava lentamente os enchidos, como que a sentir a sua textura e degustando os seus cambiantes de sabor, apreciando inclusivé o salgado extremo e o ranço de alguns. Esboçou um sorriso por encontrar algo familiar, disse umas palavras de agradecimento para aqueles que antes possuíam aquele lar. Acabou por adormecer, ébrio e esgotado, estendido com os braços e a cabeça sobre a mesa.
Não sabe quanto tempo tinha dormido. Levantou-se pegando numa garrafa, com a sua lanterna explorou melhor aquela cave: uma lareira, utensilios vários de jardim, ferramentas e ao lado dum armário, uma pequena porta, estava fechada à chave. Disparou à fechadura e arrombou-a. Lá dentro uma sala de garagem. Havia um carro , mais ferramentas, pneus por todo o lado, e sentia cheiro a óleo, havia um portão que a muito custo abriu, encontrava-se no meio da vila outra vez. caminhava sem destino, olhava à volta e observava a morte em todas as direcções, deitou a arma fora, o uniforme e as botas.
Voltou à casa, fechou a porta, e sentou-se. Pôs a mesa, dispôs os enchidos por categorias e as garrafas por diferentes castas e ordenou-as por anos. Levantou-se, recuou e olha para a obra à sua frente. Deu graças e começou a cear. Seria o talvez o último homem, sentiu-se vencedor da batalha, logo tinha motivos para celebrar, e de súbito, reclamou para si tudo aquilo e chamou àquele lugar a sua casa, reconstruíria um lar e quiçá a vila! Autointitulou-se de presidente da câmara e deu vivas! Tudo isto merecia um festim! Bebendo até a exaustão.
Um bomba caia do céu entretanto, entrando pela sua bela sala, tudo explodiu em mil pedaços, o corpo despedaçado, morreu sentado, com um prato de chouriços à frente e a um copo de tinto agarrado.
Sem comentários:
Enviar um comentário