"Como sabemos, nada angustia mais os editores do que publicar livros numa época em que a "lei de Lem" reina por todo o lado( ninguém lê o que quer que seja; aquele que apesar de tudo lê não percebe nada; e se percebe depressa trata de esquecer). A razão disto é que ninguém tem tempo para ler, porque o mercado está inundado de livros, e porque a publicidade se tornou um instrumentos muito perfeito. A publicidade - essa nova utopia - é actualmente objecto de um verdadeiro culto. Se podemos olhar sem discernimento todas as emissões aterradoras, ou simplesmente aborrecidas que a TV nos propõe( e as sondagens de opinião bem o provam), é porque as sequências publicitárias que passam no intervalo nos dão uma descontracção suficientemente apreciável depois do espectáculo mortificante de todos aqueles políticos disparatados, daqueles cadáveres ensanguentados caídos pelo chão por motivos diferentes, em vários pontos do globo, ou daquelas telenovelas, que nem conseguimos seguir bem, de tal forma são intermináveis( não esquecemos só o que lemos, mas também o que vimos). A Arcádia não subsistiu, portanto, senão no mundo da publicidade. Aí vemos lindas mulheres, uma de cada vez, homens expansivos com ar distinto, crianças felizes e pessoas de idade como os olhos cintilantes de inteligência, geralmente usando óculos. Um prato apresentado numa nova embalagem, uma limonada com aroma natural, um "spray" contra transpiração dos pés, lenços de papel impregnados com essência de violetas(...) A expressão de felicidade intensa que se lê nos olhos ou nos traços dessa encantadora mulher, ocupada a examinar um rolo de papel higiênico ou a abrir um armário como se fosse a caverna de Ali Baba, comunica-se imediatamente a todos os espectadores. Neste fenómeno de empatia esconde-se, talvez, um sentimento de ciúme e até mesmo uma ponta de irritação, porque todos sabemos que não podemos sentir o mesmo entusiasmo ao beber aquela limonada ou ao utilizar aquele papel higiênico; as portas da Arcádia estão-nos fechadas, mas isso não impede que o seu doce fascínio nos toque. Aliás, para mim a coisa era clara desde o inicio; ao desenvolver até à perfeição a "luta pela vida" dos artigos de consumo, a publicidade tinha totalmente de nos subjugar; e se conseguiu fazê-lo, não foi porque a qualidade dos produtos tenha aumentado, mas sim porque a do mundo não fez senão piorar. Depois da morte de Deus,o que é que aconteceu aos sublimes ideais., ao sentido da honra, aos sentimentos desinteressados, nas nossas cidades superpovoadas, inundadas pelas chuvas ácidas? Nada nos resta senão o êxtase das senhoras e dos homens da publicidade gabando os bolos, os pratos e os lubrificantes, como se proclamassem o reino dos céus. No entanto, uma vez que a publicidade afirma com uma eficácia perturbadora a perfeição de tudo quanto se propõe, quando se trata de escolher um livro - não interessa qual - o potencial leitor sente-se seduzido por vinte mil Miss Mundo simultaneamente, e como não pode decidir-se por nenhuma, fica paralisado numa espécie de expectativa amorosa, entorpecido como um imbecil. A advertência vale para tudo o resto. A TV por cabo, capaz de transmitir simultaneamente 40 programas, convence o espectador, impressionado pelo número de canais, de que aquele que ele não sintonizou deve ser melhor do que aquele que está a ver: e assim começa a saltar de canal em canal como uma pulga numa frigideira; isto prova que uma técnica perfeita é altamente frustrante.Ninguém disse de forma explícita, mas prometeram-nos o mundo inteiro, deram-nos a ideia de que poderíamos, senão possuir tudo, pelo menos ver tudo, tocar tudo.... Como arte, a literatura, que não é mais do que um eco do mundo, o seu reflexo e o seu comentário, caiu na mesma armadilha."
Stanislaw Lem - Berlim, 1983
Stanislaw Lem - Berlim, 1983
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