XLVII - Huntze
Huntze vivia no mato. O seu horizonte era curto. Um esverdeado vale de bosque e savana. Circundado por uma serra de altos picos entremeados com neve e cortados no alto por espessas nuvens brancas. Um clima temperado. A noite era escura, com ruídos habituais e os clarões do fogo reflectidos na folhagem. O dia claro e colorido, soalheiro na maior parte das vezes.
As suas sensações maiores resumiam-se ao crepitar da fogueira e à rotina da caça. Colhia bagas e frutos, caçava roedores e insectos e pescava pequenos peixes, a única fauna ao seu redor.
Junto ao riacho, com uma pequena cascata de água gelada, divagava sobre o que se passava do outro lado das montanhas intransponíveis, o seu limite espacial.
Dormia na gruta, passeava no bosque, e não se afastava do seu mundo. Não havia certamente vida melhor. Acordava com a claridade e adormecia ao entardecer. Os dias passavam, e a rotina continuava. Será que o riacho teria um fim? Haveria mais floresta do outro lado do seu mundo? Os únicos ruídos seriam aqueles que escutara? Haveriam sabores diferentes? A textura do chão seria aquela? Não saberia, mas pouco importava. Dava-se bem ali. Não deveria haver mais nada, de quando em vez, novos pássaros apareciam em determinada época. Mais peixes nasciam junto à foz. Pouco ou nada mudava com o passar do tempo. Somente as cores da folhagem variavam dependendo da altura do sol, e do tamanho dos dias. Era mais feliz aquando o degelo, parecia que tudo acordava, fosse a flor que brotava, o chilrear que se acentuava ou mesmo os animais rastejantes que nas rochas se aqueciam. A gruta, essa modificava-se, pequenos esqueletos de animais amarrados em armações de madeira, peles que esticava e conservava para as suas vestes e cobertas de cama, utensílios de osso afiados com que preparava suas armadilhas, e pequenas pedras coloridas que encontrava nas margens prateadas do seu rio. Tudo aí se acumulava. Fosse para seu próprio proveito, ou apenas como objecto de colecção e admiração. Não deixava de mostrar curiosidade pelos pontos de luz, que vinham do alto, quando a noite caia, pareciam-lhe pequenas fogueiras como a sua, quando subia aos montes perto do desfiladeiro e olhava para a sua gruta distante. Causava-lhe pavor o afastamento, faziam-no voltar para trás, o medo do desconhecido, e a estranheza da distância. Havia um misto de encanto e de feitiço por aquele lugar, se por um lado queria afastar-se e conhecer novos lugares, por outro não ia longe nem se aproximava muito das longinquas montanhas. Não era só o receio de se perder, mas também o facto de se encontrar em território hostil, e desconhecer se haveria alimentação, um resguardo, ou mesmo se aguentaria as temperaturas mais baixas durante muito tempo. As incógnitas eram mais que muitas, e de qualquer forma não se sentia preparado nem tinha a curiosidade de se aproximar desse novo mundo e dos que para lá desse se revelariam. Curiosidade tinha mas as perguntas eram mais que as respostas. Deixava-se ficar, avançava contudo cada vez mais nas montanhas, marcando com uma pedra dura o caminho de volta, mas assim que deixava de ver a luz, ou mesmo o fumo da sua familiar fogueira, volta para trás de súbito. Tal como a montanha , também o percurso do rio o fascinava, corria para lá do desfiladeiro, entrando por uma gruta estreita e perdendo-se no meio das rochas altas e cinzentas. Pensava que um dia havia de conseguir superar os seus medos e os receios da separação do seu lar. Para já as suas preocupações prendiam-se em observar a evolução do seu mundo, ou sua diária revolução. Questionava-se donde vinham os pássaros que conseguiam ultrapassar as nuvens e vinham de algum lugar distante. Se assim era, é porque de facto havia algo do outro lado. Tentava métodos diferentes de conservar a carne das suas caçadas, mas nunca resistiam mais de 3 sois. Notava, que era durante a altura que o gelo aparecia nas montanhas, descendo quase até chegar ao seu Vale, que a carne se conservava. Só tinha sucesso quando guardava os frutos de casca dura, esses duravam mais tempo, mas ficava fraco só com esse tipo de alimentação. As vezes apanhava herbivoros e enjaulava-os na sua gruta, conseguia alimenta-los com erva fresca e pequenas bagas ou mesmo com insectos. Eram a sua única companhia. até lhe fazia pena ter de os matar para comer, mas antes assim. Havia dias que a fome apertava, principalmente na altura do gelo. Imaginava que se talvez os conseguisse transportar com ele numa jaula pequena, e mais as pedras de fazer fogo, fosse possível chegar ao cume de uma daqueles montes tenebrosos que tanto o obcecavam. Ou mesmo passá-los e encontrar outra gruta onde habitar, mudando assim de mundo. Seria um empreendimento difícil mas não impossível.
Achava estranho nunca encontrar ninguém igual a si, será que era o único assim? Via tantos animais iguais, uns com pêlo comprido, voadores, outros rastejantes, e mesmo os que viviam debaixo de água. Mas Huntze era diferente de todos, já tinha percebido que todos menos ele tinham medo do fogo, que era uma capacidade só dele; o facto de o fazer e dominar. Ali era o ser dominante ninguém tinha coragem de o enfrentar, todos fugiam. Sentia-se bem por isso, dava-lhe conforto, era tranquilizante.
As experiências com os animais enjaulados iam de vento em popa, conseguia-os manter mais tempo. Só precisava de perceber como armazenar mais bagas e frutos, e começar a juntar peles para aquecer o corpo e outras para cobrir a sola dos pés. No chão do bosque andava bem descalço, mas na subida para a Montanha sangrava, e depois custava-lhe a caminhar. Passou a usar pequenas sacas de pele enfiadas nos pés, e atadas com as tiras de madeira seca que lhe serviam também para as armadilhas.
Decidiu um dia, e depois de contabilizar quantos animais tinha aprisionados e o restante alimento guardado, fazer uma pequena expedição , marcando sempre o caminho, e deixando pequenas reservas alimentares enterradas e assinaladas, caso tivesse algum azar e tivesse de regressar à pressa. Decidiu partir num dia quente quando os primeiros raios de sol incidiam no Vale, foi subindo com calma, conservando as energias. Não queria ir muito longe, só o suficiente para vislumbrar para lá da primeira cordilheira. A subida não se apresentava difícil, ia bem disposto, bem apetrechado, com o seu arco e as setas aguçadas. Carregado é certo, mas fazia as suas pausas. Determinou que a sua inicial paragem deveria ser quando o sol estivesse no ponto mais alto. Parou. Agora não havia água corrente, somente a transportada e essa aquecia, matou um bicho da gaiola, e cozinhou-o ali mesmo. Melhor seria deitar-se um pouco, e fazer a digestão, não sabia quanto mais ia andar, e por onde seria o melhor caminho. Cada vez era mais íngreme e não queria ultrapassar os seus limites nem cair, pois seria o seu fim. Pôs-se novamente a caminho, restavam-lhe 3 animais e uma saca de frutos. Notava que quanto mais subia mais frio ficava e mais rápido se cansava. Seria melhor ter trazido mais uma pele pelas costas, pensou. O topo já não ficava longe, calculou que 2 sois seriam suficientes. A noite caiu e com ela Huntze. E surge o segundo dia, uns golos de água, uma mão cheia de bagas e recomeça a caminhada. A boa disposição acompanha-o, está cheio de confiança, nunca antes tinha estado tão distante, perdeu de vista a sua gruta e a sua fogueira. O cinzento das montanhas, um vento gélido, cheiros desconhecidos, ruídos estranhos, era agora tudo o que sentia, mas nada que não estivesse preparado. Esperava tudo, pois o seu mundo ficava para trás. Subia energicamente, com vontade de bater a sua própria meta. Queria chegar aquele pico antes do outro sol. Consumiu o seu segundo animal, afastou-se da fogueira e prosseguiu, a respiração era mais difícil, a carga tornava-se mais pesada, a passada mais lenta. Olhou para trás já tudo era desconhecido, o percurso uma incógnita. "Só mais um sol, só mais um" decidiu. As suas solas manufacturadas começavam a ceder sobre aquele chão cortante, teria de em breve as substituir, mas não havia tempo a perder, a comida escasseava e o final do percurso tardava. Tanta desolação por aqui, comentou. Se se perdesse estava destinado a morrer, nem um insecto, uma raiz, nenhuma vida, tudo tons pardacentos, e o topo estava ainda longe de surgir. Huntze estava prestes a desistir. Nunca esperou que a fadiga chegasse tão rápido. Só mais um sol, repetiu. Lembrou-se da gruta, da sua cama acolchoada, da erva fresca, do riacho, da terra mole...Aqui, outra textura e composição, dura e agreste. Enquanto caminhava distraía-se procurando formas nas rochas que pisava, custava-lhe assim menos a subir, e sempre recordava algo familiar. A noite aproximava-se novamente e teria de encontar um qualquer buraco que lhe servisse de abrigo. Pelo menos que desse para uma fogueira e não apanhar com esta chuva ou humidade, que estava sempre em cima dele, quase parecia que andava por dentro das nuvens, e estava fatigado, precisava de dormir. Encostado entre duas rochas o sono parecia não chegar, preocupava-o o desfecho da viagem, os animais na gaiola estavam mortos, haviam poucas bagas, e a água já tinha acabado há muito, bebia-a e guardava-a de poças quase geladas. E na saca já não aquecia, congelava. Questinava-se se haveria de continuar, afinal já não deveria faltar muito, e estava próximo do topo. O frio, não deveria ser mais intenso.
A claridade surge e com ela a caminhada. Não sem antes cozinhar os ultimos animais, pois se este é o derradeiro dia que a barriga vá cheia. O caminho já o faz mais facilmente, apesar do cansaço, notou que se andar mais devagar e respirar mais compassadamente, obtém um maior rendimento. O Topo aproxima-se e a excitação de chegar. O ar está humido mas sem nuvens portanto deverá dar para espreitar o outro lado. A pressa de chegar faz com se torne incauto, trepa e salta as rochas quase a correr, escorregando por vezes mas sempre se equilibrando. Eis que está no topo, mais umas passadas e verá o outro lado! Desilusão...Duas ou três colinas à frente tapam-lhe a vista, não desiste. Afinal o objectivo não está cumprido, e prossegue. Começa a ver o outro lado...mais montanhas, alguns lagos, e uma floresta enorme e compacta de grandes árvores muito ao longe. Espectáculo grandioso este! Deixa-se cair para trás, atira a gaiola das costas ao chão e acende o seu cachimbo. Suspira de alívio, missão cumprida! Um dia voltará aqui, mas indo mais longe, para se embrenhar em tão vasta floresta. Certamente rica e habitável. Quem sabe um melhor lugar, com espaçosas cavernas, um variedade enorme de alimento... Nem sabe se assim será, mas decerto será diferente e estimulante. Alto! Põe-se alerta...O que é aquilo? Vê fumo ao longe, no meio dumas árvores. Entre o silêncio e na distância, pareceu-lhe ver seres iguais a ele. Seria possível? Ou será tudo imaginação? Não! São mesmo! Quem serão? Huntze, instintivamente levanta-se e corre para trás. Desce a montanha desvairado, um misto de espanto e de terror o possuem...Só pára quando já não consegue mais....Descansa um pouco, bebe água e prossegue caminhando em direcção ao seu Vale.
Chegou. Que alívio! Entra na sua caverna, tudo na mesma, os seus esqueletos, as suas peles, a sua cama, deita-se consolado. Dorme durante quase um dia.
Acorda noite cerrada. Reacende a sua fogueira. Vai matutando sobre quem seria aquela gente, quem seriam, será que o tinham visto? E que sorte tinham em viver naquela floresta enorme! Invejava-os, mas agora receava pela sua vida, seria seguro encontrar-se com eles? Seriam amistosos? Estariam ali há muito tempo? Na volta ocuparam aquele lugar recentemente e em breve invadiam o seu vale. Mas não, pensou ele, se lhe bastaram duas noites e 3 sois para lá chegar de certeza que já aqui estariam. E afinal, apesar de pequeno, o seu Vale era rico, tinha tudo que poderia pedir, um riacho, um pequeno bosque e um clima ameno. A solidão atormentava-o, quem sabe se não deveria juntar-se aquela gente. Mas aqui era dono e senhor de tudo. Dominava os caminhos, conhecia os melhores lugares de caça, inclusivé sabia onde poderia mergulhar e atirar-se do alto das rochas e penetrar na águas do riacho até quase tocar no fundo. Os animais eram seus, as plantas já reconhecíveis e tudo familiar. Talvez fosse melhor assim. Que lhe interessava aquela gente? Que poderiam trazer de novo? Já conhecia tudo, mesmo na escuridão caminhava sem medo. As luzes no céu suas, o vento nas folhas um aconchego, as árvores altas suas amigas, os animais seus companheiros, a gruta seu refugio, e o riacho seu conselheiro. Aqui tudo corria lentamente, sem surpresas inesperadas, sem receios súbitos,e sem medo do desconhecido. Aqui vivia, aqui prosperava, sozinho é certo, mas acompanhado de tudo que era dele. Agora já conhecia outro mundo, já conhecia outra gente, e ainda mais apreciava o que era seu. Era o seu sem dúvida, e nada mais pretendia. Sorria ao olhar para o alto da montanha, e dizia um longo adeus aos seus vizinhos. Correu em direcção ao riacho, gritou, e entrou nas águas. Contente. Alegre por se encontrar no seu Vale, o seu Mundo.
segunda-feira, 13 de agosto de 2007
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